Autômatos

Consta que o escritor E.T.A. Hoffmann era obcecado pela idéia de autômato – veja-se seu conto homônimo e também um outro conto, adorado por psicanalistas, Homem de areia (todos reunidos na coletânea Contos fantásticos, publicada pela Imago, 1993). O personagem, no conto (Os autômatos), se apaixona por Olímpia, uma mulher perfeita: paciente, incapaz de sentir-se entediada por ele, sempre pronta e disposta a ouvir – e a deixá-lo em paz, sem fazê-lo se confrontar com a dura realidade que vivia (da qual sua verdadeira namorada, Clara, lhe dava o retorno). Natanael, o personagem, se apaixona perdidamente por aquela mulher-objeto, mas disto ele só veio a saber mais tarde. Olímpia era a própria imagem de Natanael, com a qual ele se apaixona. Um princípio básico da idéia de amor (narcísico) da psicanálise.

Saindo da ficção, ou pelo menos de um dos núcleos dela (a literatura), a metáfora do autômato parece sempre atual e possui certo fascínio. Quando ouvimos por aí que fulano foi levado por uma força da qual não conseguiu se furtar; ou quando ciclano diz que a sociedade controla suas ações, impedindo-o de “ser ele mesmo”; ou ainda quando, nesta época de festas, vemos os shoppings repletos de pessoas zigue-zagueando de lá para cá comprando ou trocando presentes, movidas por uma aparente força invisível (claro que os publicitários não diriam desta maneira…); ficamos com a sensação de que muita coisa funciona na base do automatismo.

Até em ciência, se considerarmos epistemologias como o Realismo, que advoga que há “mecanismos subjacentes” a diversos fenômenos vistos “a olho nu”, ficaremos com a impressão de que, mais uma vez, estamos diante da linguagem dos automata. Claro que, nas ciências (sociais, humanas, mas, obviamente, elas são as mais “fracas” nesse sentido), o propósito de pressupor autômatos é de predizer o comportamento. Como não temos acesso direto ao que produz este último, pelo menos não em termos de “crenças, desejos e razões” (pois os neurocientistas têm lá seus “truques” para decodificar o comportamento a partir do cérebro), precisamos inferir, em forma reversa a partir do que vemos (comportamento/ações), o que se passa “lá dentro” da cabeça das pessoas, ou mesmo o que se passa “lá fora” na sociedade. Neste último caso, e sobretudo na sociologia inspirada pelo Realismo, fala-se em mecanismos sociais.

Acho bastante interessante esse fascínio pelo autômato, pois, na modernidade, uma das virtudes mais defendidas é a autonomia, a possibilidade de agir por si mesmo. Ainda na Sociologia, sabemos que diversos críticos se colocaram contra essa idéia Renascentista/Iluminista: pense-se, por exemplo, em Marx, Durkheim, e num punhado de estruturalistas (já no terreno da filosofia). Sabemos, hoje, que as coisas não são assim tão cor-de-rosa no terreno da liberdade individual, e que há uma certa tensão entre o espaço de nossa iniciativa e o das outras pessoas com as quais convivemos e o das instituições pelas quais circulamos.

Mas o idéia de autômato realça o lado exatamente oposto: a fantasia, o engodo, o simulacro de auto-controle. Autômatos acreditam (e julgam conscientemente) que estão no controle. É justamente essa a essência do autômato: mover-se, falar, “performar” em todos os cenários, COMO SE fosse ele a fazê-lo, por sua própria escolha. E, mesmo que, num raio de consciência, perceba que é o próprio ponto de inflexão de forças das quais não tem controle, acaba por concluir que “é assim mesmo” e que, uma vez na luta, precisa reagir. Mas conseguiria esta reação equalizar-se com a ação dos outros/Outros sobre ele? Difícil saber, realmente difícil. Acho que, quanto mais somos indivíduos (no sentido moderno, uma unidade que se percebe/crê autônoma, livre), mais reforçamos o “tableau”, o estrado que é a vida em sociedade.