A vida é democrática?

Pois uma coisa é você dizer que alguém morreu porque tinha de acontecer, porque não temos controle sobre a natureza, e porque, no fundo, somos seres frágeis e a ciência (a medicina, neste caso) chegou até um ponto fantástico de desenvolvimento, mas jamais vai conseguir impedir a morte. De gente e de bichos (no caso dos bichos, como já falei aqui, a situação é ainda mais esdrúxula).

Outra coisa é alguém morrer, ou um bicho, porque não houve atenção. Erro humano? Uma possibilidade. Limite tecnológico? Outra. Mas as coisas não param por aí.

Em certos lugares, morre-se mais que em outros. Se houvesse alguma estatística refinada (na verdade, deve haver), com certeza os dados mostrariam isso. Causalmente, devem haver muitos fatores: humanos, tecnológicos e, claro, fatores relacionados “à coisa em si” que é, em muitos sentidos, o corpo vivo.

Mas seria a vida democrática? Quero dizer, Deus, quando criou este mundo, distribuiu a morte equitativamente? Ora, dizer que, ao final, todos vão morrer, ricos, pobres, brancos, negros, asiáticos e brasileiros, enfim, tentar, a partir da morte, criar uma espécie de crivo metafísico para aliviar as coisas, é um absurdo ético.

Pois a vida não é democrática, e, apesar de as pessoas, “ao final”, morrerem, sabe-se que algumas morrem bem mais cedo, e em condições muito piores, do que outras.

A vida depende de duas coisas: do corpo e sua própria dinâmica (e cada corpo, humanos e não-humanos, têm sua singularidade e responsividade – por exemplo, a tratamentos); e de atenção. Atenção da parte do próprio “ser” de cuja vida se trata, como também, e principalmente, do outro.

Esse “outro”, na sociedade industrial e de extrema divisão e especialização do trabalho, é, frequentemente, o médico. Um médico bom não é aquele que tem à sua mercê uma infinidade de exames possíveis e imagináveis. Mas é aquele que consegue perceber, notar, identificar, o que se passa. Para isso, precisa tocar, pensar muito a respeito, consultar, estudar, comparar, etc.

Em que situações um médico fará isso que eu acabo de dizer? Há variações, claro; mas, em geral, quando houver dinheiro. Muito dinheiro significa que a outra pessoa, o profissional, aceita investir e dedicar todo seu corpo e mente a entender o que aquele corpo diante de si está “dizendo”. Envolve comprometimento: não apenas com um senso de “trabalho bem feito”, como se diz em algumas teorias de psicologia do trabalho, mas praticamente uma entrega, uma doação. Doar-se ao outro, seja ele um humano ou um não-humano, que é, como você que me acompanha, o assunto dessa última sequencia de posts.

A relação do corpo com o outro que cuida é uma relação mediada pelo dinheiro e pelo “gênero profissional”, uma espécie de cultura de cada profissão. O saber que aquela profissão, ao longo do tempo, foi colocando à disposição do profissional. Eu, hoje, estou mais crítico e, portanto, mais convencido de que o dinheiro é um importante marcador, um divisor de águas entre a vida entregue ao “silêncio dos órgãos”, como diziam Guatarri e Deleuze, e a vida que simplesmente pede para ser escutada.

De novo, para não perder meu argumento: a situação no caso da medicina veterinária é surreal. Primeiro, pois a “vida” não “fala” (em sentido literal). Daí a necessidade de uma capacidade de “empatia” quase metafísica. Depois, porque essa vida, em si, como disse a dois posts atrás, é mercadoria.