A última avó

O que podemos pensar da vida quando nossos avós morrem? Quando nasci, logo morreram três de meus avós – os dois por parte de mãe, e meu avô por parte de pai. A impressão que tenho é que, quando isso ocorre, você tem um pouco da sensação de que o círculo inferior a você está começando a se fechar. Nesse caso, de duas uma: ou o círculo final é você mesmo, sendo uma questão de tempo; ou você passa esse círculo da vida para frente, na forma de filhos e, depois, netos, bisnetos, etc. Em ambos os casos, todavia, você se sente, por fim, novamente ligado ao fluxo da vida – à ascendência e (se for o caso, não é o meu) à descendência.

Quando eu nasci, a vó Luiza (ou, para todo mundo que a conhecia, simplesmente “Dona Nenê”) já era velha. Neste, ela completaria 99 anos (nasceu no dia 03 de setembro de 1916). Perdeu o marido por volta dos 68 anos ou um pouco menos. Sempre viveu no sítio, e tinha um modo psíquico de funcionamento de pessoas que eu nunca mais tive a oportunidade de conhecer. Sóbria o tempo todo, mesmo no momento de sua morte. Nunca foi de hospital, e, claramente, era “o homem” da família. Com ela, aprendi não muita coisa – não porque ela não tivesse o que ensinar, muito pelo contrário; mas porque acabei “puxando” mais para outro ramo da família…

Lembranças, porém, tenho muitas. Por exemplo, quando eu era uma criança chegando aos 11 ou 12 anos, inventei que deveria “ensinar” minha avó a ler e escrever. Então, paciente, ela tentava aprender o que eu achava que “ensinava”. Sempre no mesmo lugar: no sofá da sala, aquele antigo sofá de couro desgastado onde ela, toda tarde, assistia à televisão. Naquela sala da infância, sempre calma, com um cheiro característico que não consigo mais descrever mas só lembrar, perto da cristaleira onde eu sempre teimava em burilar, ali eu abria os livros e cadernos e tentava fazer minha avó escrever. E ela tinha uma calma… me explicava, calmamente, “Fernando, a vó não sabe escrever, vamos parar com isso…”; e eu seguia…

Eu adorava a cozinha da casa de minha avó. Aquela cozinha, ainda hoje, me lembra uma espécie de fortaleza de simplicidade, ao mesmo tempo em que ordenada. Adorava ficar na cozinha fechada, com o fogão de lenha aceso, o vento batendo lá fora… Adorava a sopa de feijão de minha avó, onde ela colocava um ovo inteiro, às vezes recém-saído da galinha, para cozinhar… era uma sopa rala, com um pouco de macarrão, mas nunca mais eu comi algo daquele jeito. Ia à missa… talvez por conta dela e das amigas, todas senhoras muito católicas, eu tenha tido a vontade de ir para o seminário para ser padre. Ela ia todo sábado, e sentava-se no último banco. Dona Nenê era uma das pessoas mais discretas que já conheci na vida.

Ela era dura comigo, mas nunca, jamais, consegui sentir um remoto sinal de raiva de minha avó. Nunca. Ela foi minha segunda mãe, com quem eu passava praticamente a maior parte de meu tempo depois que voltava da escola. Minha infância teria sido um terror vazio sem ela. Por muito tempo eu só ficava na companhia de idosos, pois minha avó me ensinou a amá-los… nunca vou esquecer aquelas tardes em que eu ficava deitado, brincando, escutando minha avó e a Dorvalina, a “Matirde”, e tantas outras senhoras que adoravam, adoravam!, conversar…que prazer!

Pois hoje minha avó faleceu. Neste exato momento, ela está sendo sepultada lá no interior de São Paulo, de onde ela nunca saiu – exceto para ir à cidade, de onde trazia bolachas e a “compra do mês” que ela pegava com o dinheiro da aposentadoria. Ela ia de ônibus, com uma bolsa xadrez de couro. Uma pessoa independente, autônoma, sóbria, altiva, centrada, trabalhadora, uma pessoa que eu NUNCA ouvi reclamar, NUNCA ouvi desistir do que quer que fosse, por mais simples que, hoje, eu vejo que aquilo era. Eu espero que ela descanse em paz, que ela agradeça a Deus pela longa vida que levou, e eu quero agradecê-la por tudo o que ela deixou em mim (fisicamente, tenho certeza de que meu “narigão” vem da linha dos Nozella…E, nessa jornada que é a vida, tenho certeza de que NUNCA, nós que somos descendentes, conseguimos dar de volta o que recebemos. Eu, pelo menos, não aprendi isso, ou simplesmente não consigo fazer. Sei que poderia ter sido um neto melhor, sobretudo um neto mais próximo, mas nada disso apaga minha gratidão pela minha avó, que sempre estará na minha vida, nas minhas lembranças, nisso que sou.

Luiza Erotides Nozella Bendassolli, 03.09.16 – 06.06.2015