O “eu” para o “outro”

Pense um pouco. Você acha sua vida fácil? Provavelmente, não; certo? A dor, doença, as insuficiências, as expectativas frustradas, as lacunas insolúveis do mundo e etc. Tudo isso é vivenciado individualmente, embora se possa compartilhar alguma coisa. A vida não costuma ser fácil. Se você não é rico, então, teve de construir-se a si mesmo: trabalho, carreira. Seu caminho pode ter sido facilitado por muitas pessoas, mas, ainda assim, certamente você sofreu para chegar aonde está, ainda que não tenha ido longe na vida (ainda).

Mas não é só, ou principalmente, de carreira que estou falando, nem de dor/doenças ou coisas do tipo, e como tudo isso pode tornar sua vida difícil. Estou falando da impossibilidade de transmitir nossa experiência, e, sobretudo, da impossibilidade de impedir o sofrimento do outro. Qualquer tentativa de impedir tal sofrimento implica em viver a vida pelo outro, em colocar-se como a solução para o outro. Uma espécie de muleta imaginária do outro.

A sensação de impotência em relação ao outro é, no mínimo, uma impostura diante de si mesmo. Ninguém deveria sentir-se impotente perante ninguém, a menos que, repito, se coloque no lugar de preencher o outro. Ou pior: a menos que o outro, mirando em seu narcisismo ferido e em sua vontade de amor, lhe provoque culpa, esse sentimento ardiloso que lhe enfraquece. Culpa e desejo de reparação são duas faces de uma mesma moeda. Não digo que não é necessário, para a convivência intersubjetiva, a culpa recíproca; estou dizendo que a culpa, em certas circunstâncias, é uma armadilha.

Em três situações ocorre a sensação de culpa e a possibilidade de captura imaginária pelo outro. Primeira, na esfera afetiva, da sexualidade. Segunda, entre pais e filhos. E, terceira e mais relevante neste post, a relação professor-aluno.

Quando o aluno não aprende, sentir-se-ia o professor culpado? É difícil dizer. Pois a aprendizagem depende, de fato, do professor, mas não só. Alunos relapsos, descompromissados, perdidos em suas próprias angústias, podem, sem qualquer dificuldade, insinuar culpabilidade do professor. Então, o que faz este? Se cair na armadilha, se enfraquece. Se sentir-se unicamente culpado, não conseguirá denunciar a falta no aluno, não apenas nele (professor). Na verdade, ambos, professor e aluno, estão às voltas com alguma falta, e nada deverá superar essa falta fundamental (a incapacidade de aprender, de evoluir, de um lado; e a incapacidade/limites da transmissão, de outro).

Entre colegas de trabalho algo similar ocorre, especialmente quando um desses colegas têm alguma “visibilidade” (está em alguma posição de gestão, por exemplo, ou de pionerismo). Colegas espreitam o tempo todo tentando farejar alguma falha que, a depender de sua magnitude e impacto, não tardará a insinuar em você. Ou então, situação grave, o grupo se alia em torno de uma desmobilização em que ninguém deseja nada, e, portanto, ninguém está exposto à falta (só percebe a falta quem deseja, ou só deseja quem tem falta). Grupos anômicos, afetiva e profissionalmente, são reflexo disso.

Em suma. Não assumir a falta do outro, e, não obstante, continuar a desejar por si e para si, essa é uma linha de ação mais favorável à potência do próprio eu. Então, deixemos o outro com suas angústias; elas não nos dizem respeito. O outro é (supõe-se) um adulto, e adultos são livres e responsáveis por suas escolhas e sobre seu próprio sofrimento. Com isso, gera-se uma ética do individualismo? Não creio em tanto. Talvez, com isso, se gere uma vida mais cruel, no estrito sentido de crua, real. Mais thymos, menos eros!