Aprendizagem de ganso

De modo puramente aleatório, chegou até mim hoje um texto sobre formação presbiteral. Nada poderia estar mais distante da minha vida atual. Ainda assim, houve um tempo em que esse tema me seria profundamente familiar. Participei, por alguns anos, de um seminário menor – etapa formativa inicial de quem começa a trilhar o caminho rumo ao sacerdócio. À época, textos como esse fariam parte natural da minha rotina. Seja como for, o artigo toca em um ponto absolutamente fascinante, que, no contexto da formação teológica, assume contornos ainda mais dramáticos: até que ponto a formação, de fato, transforma quem é formado.

A tese central do texto é a de que pode haver um tipo de formação presbiteral em que os conteúdos são assimilados, os conceitos bem articulados e os estudos conduzidos com diligência, sem que nada disso, contudo, produza uma transformação real do sujeito. Trata-se de uma formação que opera no plano cognitivo, mas não alcança o coração nem a alma. O autor recorre à imagem de uma “teologia de ganso”: um saber que escorre pela superfície, sem penetrar. Na melhor das hipóteses, o resultado é um bom gestor, um executor eficiente de rituais; não, porém, um pastor capaz de se deixar afetar pelo sofrimento alheio, nem de permitir que o encontro com o outro o transforme.

Ao transpor essa reflexão para minha prática atual, vejo com clareza um dilema análogo na formação em psicologia, campo em que atuo. Evidentemente, não se trata do mesmo grau de mobilização existencial envolvido na formação sacerdotal; afinal, não estamos formando padres, mas futuros psicólogos. Ainda assim, há semelhanças importantes. A formação em psicologia não lida apenas com objetos externos ao sujeito, mas convoca continuamente seus afetos, sua história, sua própria subjetividade. No entanto, no campo específico da psicologia do trabalho (meu campo), essa dimensão transformadora tende a aparecer de modo mais opaco, já que o estudante é frequentemente pensado – ao menos em tese — apenas como um futuro trabalhador.

Aliás, acho curioso notar que um estudante mediano de psicologia costuma se envolver muito mais intensamente com temas como o “ser”, o “nada” ou o “ser-no-mundo” do que com discussões sobre sentido do trabalho. Isso ocorre, primeiro, porque a maioria dos estudantes — especialmente em universidades públicas – não é, ao mesmo tempo, trabalhadora e estudante. Falta-lhes, portanto, familiaridade concreta com as problemáticas do trabalho e, menos ainda, com a experiência das organizações, frequentemente percebidas apenas como espaços de exploração. Segundo, porque o psicólogo em formação parece ter dificuldade em admitir, salvo de modo difuso e por vezes ressentido, que também ele será um trabalhador inserido em uma economia de serviços.

O psicólogo, em regra, não ocupa um “emprego” clássico; tende a atuar como profissional liberal ou autônomo, à semelhança de médicos, dentistas ou fisioterapeutas. Isso significa ingressar em um mercado marcado pela oferta de serviços, pela oscilação da demanda e, não raramente, por condições de precarização. Paradoxalmente, o trabalho – que estrutura concretamente a vida adulta – aparece para esses estudantes como algo mais abstrato do que categorias filosóficas como o ser.

Diante disso, a questão que se impõe aos educadores que atuam na psicologia do trabalho e das organizações não diz respeito apenas a como ensinar melhor, mas a como tornar o trabalho psicologicamente pensável e experienciável. Trata-se de ir além de uma relação instrumental com conteúdos, conceitos e habilidades, consumidos apenas para que a disciplina seja concluída e se possa “seguir adiante” para matérias consideradas mais interessantes. O desafio é implicar estudantes que, embora não sejam trabalhadores stricto sensu, vivem cercados por trabalhadores e atravessados, direta ou indiretamente, pelas dinâmicas do mundo do trabalho.

Uma estratégia que tenho utilizado é partir da vida clínica. Procuro abordar o trabalho a partir de sua função psicológica, explorando seu potencial ambivalente: ao mesmo tempo fonte relevante de adoecimento mental e de saúde psíquica. Ao fazê-lo, parto da premissa de que o trabalho possui uma centralidade psicológica que excede sua função de mera subsistência. Um obstáculo imediato a essa abordagem é a própria concepção que muitos estudantes – hoje rotulados como “Geração Z” – têm do trabalho. Diversas pesquisas sugerem que esses jovens tendem a relativizar sua centralidade, priorizando a vida pessoal, o tempo livre e experiências subjetivamente significativas, em detrimento do sucesso profissional, do carreirismo e do consumo.

Somado ao fato de ainda não serem trabalhadores, esse deslocamento torna mais difícil sustentar a tese das imbricações profundas entre trabalho e vida psíquica. Ainda assim, vejo aí um caminho promissor. Outra possibilidade pedagógica seria inverter a lógica do ensino: abandonar a primazia dos conteúdos e processos para colocar no centro da formação a própria experiência dos alunos. Isso implica trazer o estranhamento em relação ao trabalho e às organizações para o primeiro plano da discussão, não como pano de fundo, mas como ponto de partida. Em outras palavras, fazer do desconforto, da distância e da resistência ao tema do trabalho o próprio motor da reflexão formativa.

Diplomatas do vazio

No final dos anos 1950, o sociólogo William H. Whyte publicou The Organization Man. A ideia central do livro é que pessoas inseridas em organizações tendem a priorizar o pensamento grupal em detrimento do pensamento individual. Se pensarmos em comportamento organizacional, o argumento fundamental é que, ao participar da vida organizacional, o indivíduo passa a desenvolver certos padrões de conduta que são, em larga medida, moldados pela cultura da organização, pela interação continuada com outras pessoas ao longo do tempo, pela rotina compartilhada, pelas regras formais e informais, entre outros fatores.

Uma pessoa inserida na organização X terá, nesse sentido, parte de seu comportamento influenciada por características específicas dessa organização. Outra pessoa, na organização Y, apresentará outras particularidades comportamentais, uma vez que o ambiente, o contexto e a cultura da organização Y diferem daqueles da organização X. Evidentemente, existe uma faixa de comunalidade entre essas organizações (X, Y, Z, W…), seja pelo setor econômico em que se inserem, seja pelo fato de todas estarem atravessadas por elementos estruturantes do neocapitalismo contemporâneo: competição permanente, trabalho orientado a resultados, pressão por desempenho, risco constante de perda do emprego, entre outros.

Ainda assim, tendemos a minimizar a influência desses grupos institucionalizados sobre o nosso comportamento, sustentando (não sem certo grau de ilusão ou autoengano) a crença de que estamos plenamente no controle de nossas ações. Whyte criticou justamente aquilo que chamou de comportamento de manada, no qual a identidade pessoal é suplantada, muitas vezes de modo consentido, pela identidade social. Nesse registro, a pergunta “Onde você trabalha?” passa a definir mais profundamente um indivíduo do que questões como “No que você acredita?”.

Eu expandiria a noção de homem-organização não apenas para compreender comportamentos compartilhados, mas também patologias compartilhadas. Trata-se de um movimento já explorado por Christophe Dejours, no campo da psicodinâmica do trabalho, ao analisar o que ele denomina estratégias defensivas coletivas: formas de funcionamento psíquico e relacional que um coletivo desenvolve para lidar com as exigências, sofrimentos e contradições de um determinado métier. Desenvolverei melhor este ponto mais adiante.

Tomemos, como exemplo, o ambiente universitário: como qualquer outro ambiente organizacional (afinal, uma instituição de ensino também é uma organização – não apenas por possuir CNPJ, mas porque envolve divisão do trabalho, metas a serem alcançadas e uma lógica de gestão cada vez mais próxima da gestão privada), este favorece a emergência do que chamarei aqui de “espécies exóticas”. Há uma diversidade dessas espécies; para efeitos de reflexão preliminar, contudo, limitarei a análise a apenas uma delas.

Refiro-me à figura do “diplomata do vazio”. Muitos rituais universitários são essencialmente performáticos. Tomemos como exemplo uma banca de qualificação ou de defesa de dissertação ou tese. O objetivo formal é avaliar o trabalho escrito de um estudante. No entanto, se aplicássemos critérios universais e abstratos de rigor intelectual, grande parte dos pareceres poderia assumir um tom bastante crítico. Isso porque há uma relativa homogeneidade na qualidade desses trabalhos – homogeneidade que raramente aponta para rupturas teóricas, inovação substantiva do conhecimento ou mesmo sofisticação de linguagem e clareza estilística (aliás, o mesmo poderia ser tranquilamente dito do trabalho de muitos professores também!). Pelo contrário, muitos textos são medianos e, não raro, aquém disso.

Ainda assim, nesses contextos, uma crítica contundente tende a ser socialmente inapropriada. Em nome do estímulo ao desenvolvimento intelectual do aluno e, muitas vezes, da preservação do próprio ritual, o professor costuma tecer elogios e apresentar “melhorias”, cuidadosamente formuladas como sugestões. Não raramente, faz questão de enfatizar que aquilo que está dizendo “não deve ser entendido como crítica”. O resultado é uma diplomacia discursiva que preserva as formas, mas esvazia o conteúdo crítico: uma negociação simbólica permanente entre o que se pensa, o que se diz e o que efetivamente se pode dizer naquele espaço.

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A figura do “diplomata do vazio” não deve ser lida apenas como um tipo comportamental ou moral, mas como um sintoma. Mais especificamente, como a expressão de uma forma particular de sofrimento psíquico produzida pela organização do trabalho universitário contemporâneo. Não se trata de patologia individual, tampouco de traço de personalidade, mas de um efeito subjetivo recorrente de um certo modo de funcionamento institucional.

Essa leitura encontra um antecedente importante nos trabalhos de Louis Le Guillant, um dos pioneiros da psicopatologia do trabalho. Ao estudar determinadas categorias profissionais, Le Guillant mostrou que o sofrimento psíquico pode ser diretamente produzido pelas condições e pela organização do trabalho. A analogia ajuda a pensar o diplomata do vazio. Qual é o traço psicopatológico que ele deixa como rastro? Minha hipótese é que ele produz algo próximo de traços depressivos. Não no sentido clínico estrito, mas como um empobrecimento progressivo da experiência de sentido associada ao trabalho.

O diplomata do vazio opera em um regime permanente de dissociação. Ele pensa mais do que pode dizer; avalia mais do que pode expressar; percebe mais do que pode sustentar publicamente. Para manter-se funcional no sistema, aprende a modular sua fala, a neutralizar a crítica, a administrar expectativas. Esse exercício constante de contenção tende a manter o status quo, mas às custas de um potencial esvaziamento subjetivo.

O núcleo do sofrimento parece estar, ao menos em parte, na fissura entre o ideal e o real. Muitos ingressam na universidade movidos por uma imagem – ainda que idealizada – de um espaço dedicado ao pensamento crítico, à criação intelectual, à ousadia conceitual e à autonomia do saber. Quando a experiência cotidiana se organiza em torno de rituais performáticos, validações recíprocas e produtividade formal, essa imagem não se desfaz abruptamente; ela se torna um ponto de comparação silencioso, permanente. É dessa comparação que emerge o desgaste.

O efeito subjetivo não é, em geral, um “colapso” clássico, mas um estado difuso de desânimo produtivo, cinismo leve, perda de entusiasmo, redução do investimento libidinal no trabalho. O sujeito continua funcionando, produzindo, participando – mas com menor vitalidade psíquica e com uma dissonância crescendo dentro dele. O trabalho segue sendo feito (mesmo bem-feito), porém já não alimenta integralmente a identidade; ao contrário, pode passar a drená-la. É nesse sentido que o diplomata do vazio pode ser lido como portador de uma psicopatologia do sentido: o trabalho deixa de operar como fonte de significação e passa a ser vivido como um circuito fechado de reprodução institucional.

À maneira de Le Guillant, não se trata de perguntar “o que há de errado com esse sujeito?”, mas “o que há na organização do trabalho que produz, de modo recorrente, esse tipo de adaptação subjetiva?”. O diplomata do vazio denuncia, assim, não uma falha individual, mas uma forma de adoecimento discreto, socialmente aceitável e, justamente por isso, amplamente disseminada. Um adoecimento que não paralisa, mas esvazia, primeiro, aos poucos, e então cronicamente; que não destroi totalmente, mas apaga lentamente a experiência de sentido do trabalho intelectual.

Folie à deux

Ainda no campo da teatralidade da vida social, destaco a ideia de folie à deux, ou “loucura a dois”. Penso ser possível estender o fenômeno para delírios coletivos. Na essência, a folie à deux captura a situação em que duas pessoas – ou um grupo – encontram-se deslocadas da realidade sem o perceber. E não percebem justamente porque cada uma reforça e confirma a loucura da outra. Se o reconhecimento do outro funciona como espelho para validar quem somos ou o que fazemos, então o simples ato de um par endossar nossa conduta tende a criar a sensação de que realmente correspondemos ao que está sendo validado.

A ruptura dessa loucura a dois ocorre quando um “terceiro” intervém nesse circuito encapsulado, furando a bolha de retroalimentação. Esse terceiro pode assumir formas diversas. Em um casal, por exemplo, muitas vezes o nascimento de um filho exerce esse papel disruptivo: ele insere uma referência externa, desloca a simetria e interrompe a circularidade afetiva.

Mas há um terceiro que, na vida social mais ampla, especialmente quando pensamos em grupos, ocupa esse lugar de maneira estrutural: a dimensão institucional. Em tese, a instituição deveria garantir pontos de contato com um real externo, funcionando como uma voz terceira capaz de impedir a formação de uma redoma autoreferente.

File:Francisco de Goya - La casa de locos - Google Art Project.jpg

La Casa de Locos, Goya [1808/12]. Fonte.

Entretanto, paradoxalmente, a própria dimensão institucional pode produzir as condições da loucura a dois que deveria combater. Tomemos uma universidade pública como exemplo. Embora variem os arranjos conforme a área, o fenômeno tende a convergir: ao invés de fomentar diversidade e controvérsia (isto é, anti-bolhas), agentes universitários frequentemente recorrem a dispositivos que reforçam enclausuramentos. Um exemplo são os subgrupos organizados por “afinidades teórico-metodológicas”. Eles participam dos mesmos congressos, partilham jargões, referenciam-se mutuamente, orientam estudantes que logo reproduzem o mesmo circuito, publicam nos mesmos periódicos (muitas vezes criados exatamente para desovar a produção do grupo) e integram associações nacionais que consolidam essa redoma.

Mais intrigante, porém, é quando a instituição cria rituais impessoais, supostamente neutros, que deveriam regular a vida acadêmica, mas que acabam alimentando a mesma circularidade. A ideia de que “pares julgam pares”, um princípio salutar, pode se converter em terreno fértil para a folie à deux, pois os critérios, embora formalmente objetivos, são operacionalizados segundo a mentalidade particular de subgrupos.

Pessoalmente, vejo que a loucura a dois ganha força sobretudo no terreno dos afetos. Elogios cruzados, expressões infladas de reconhecimento, metáforas afetivas e platitudes constituem dispositivos de blindagem: bloqueiam o acesso de terceiros, impedem tensões críticas e produzem uma realidade circular cuja principal evidência é “o que os corpos sentem ali”. Se há corpos sentindo algo, então há validação. Quanto mais corpos, maior a sensação implícita, ou mesmo explícita, de realismo.

Uma nota essencial: é perfeitamente possível criar circularidades não apenas afetivas, mas também baseadas em critérios supostamente objetivos, especialmente no universo universitário. Falarei mais sobre isso abaixo.

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E como romper a circularidade retro-alimentada?

Uma forma de furar o círculo seria restituir o impessoal – não a burocracia, mas um critério universal de avaliação que ainda não existe. A história é repleta de exemplos de sujeitos considerados loucos, excêntricos ou marginais que, somente depois, foram reconhecidos. Romper com os círculos de loucura a dois implica romper com uma segurança ontológica falsa. Implica viver como um pária – alguém que não se encaixa, que recebe poucos elogios, pouca ancoragem afetiva. Mas, para isso é preciso ter algo, uma obra que realmente exceda o círculo. Sem obra, a situação fica mais precária. Não falo de genialidade transcendental, mas de singularidades que produzam efeitos para além dos fenômenos imediatos.

Uma outra estratégia, menos fecunda, seria tornar-se um cínico: um denunciador sistemático da teatralidade, das platitudes, das condecorações mútuas. Ou ainda a indiferença niilista, recusando o jogo por inteiro.

No contexto universitário, o cínico é aquele que se recusa a integrar grupos por afinidades teórico-metodológicas e se abriga na “pluralidade de perspectivas” – ou mesmo na ausência de qualquer base teórica única. Mas, para não naufragar, esses solitários institucionais frequentemente aderem ao produtivismo, como se a validação pelos pares distantes – citações anônimas ao redor do mundo ou similares – pudesse funcionar como antídoto para a validação afetiva que não recebem (ou que deliberadamente recusam) no âmbito local. Ou a chancela de uma agência de fomento corporativista, que cria escalas de produtividade e importância, colocando como que um “selinho” de qualidade nos currículos desses indivíduos. Num gesto paradoxal, o esforço de se distanciar da loucura a dois termina, ele próprio, jogando o cínico produtivista de volta à loucura coletiva que a própria instituição ajudou a instaurar: o produtivismo vazio.

Há ainda aqueles que respondem ao mesmo dilema dobrando a aposta no polo afetivo, só que agora deslocando-o para outra direção: os alunos. Trata-se do professor que decide investir, quase que exclusivamente, na faceta docente para além da relação transacional – ensinar, corrigir, avaliar – e passa a depender profundamente da própria performance em sala e da busca pelo amor dos estudantes. Nesse caso, o reconhecimento assume a forma de “paraninfo”, “patrono”, placas esquecidas em corredores, homenagens que alimentam a sensação de missão cumprida, de contribuição à sociedade, de formar futuros profissionais que levarão adiante a chama do saber. Aqui, a loucura a dois não se circunscreve ao círculo de pares acadêmicos, mas emerge entre professor e audiência estudantil, numa retroalimentação afetiva que também se fecha sobre si mesma.

No limite, tanto uns quanto outros, mas muito mais o cínico produtivista, acabam por aprofundar sua loucura a dois – agora não mais com um indivíduo, mas com o próprio sistema. Afirmam que seu valor reside nos indicadores de impacto, como se a ausência de reconhecimento em subgrupos afetivos pudesse ser compensada por citações maquínicas, que muitas vezes sequer implicam a leitura real do que produziram. É a loucura a dois em escala industrial: uma engrenagem de autovalidação que funciona através de números, métricas e afetos regimentados, todos obedecendo à mesma lógica circular que pretendiam superar.

O perdido

O cavalo, até onde sei, é um símbolo de potência. No passado, sua imagem corresponderia, mutatis mutandis, ao que hoje atribuímos a um automóvel: potência nas mãos de alguém. Pela mesma razão, um automóvel é associado à liberdade – a possibilidade de ir para onde seu condutor quiser. Ele está no comando. O jóquei, por sua vez, é o profissional que justamente doma o cavalo, ou melhor, que produz uma espécie de simbiose em que potência e “razão” se combinam para atingir um objetivo: vencer uma disputa. Na filosofia (Platão), houve quem associasse razão e emoção a dois cavalos, cabendo ao sujeito equilibrá-los na “corrida” da existência.

O Jockey Perdido (Le jockey perdu, 1940), de René Magritte. Fonte

Por isso, O Jóquei Perdido evocou em mim, tão logo vi a imagem, a sensação de potência e razão desgovernadas, sem caminho. Uma potência em estado puro, disponível, e uma razão em seu mais alto nível de aperfeiçoamento e técnica, ambas dirigidas a nada, em um universo distópico e surreal. O jóquei já não é capaz de orientar a energia, de fazê-la trabalhar ou convergir para um objetivo útil. Evidentemente, essa interpretação tem um viés iluminista: atribui-se à razão o papel de domar as forças vitais, as paixões, os impulsos – na metáfora freudiana, o Eu manejando permanentemente as pulsões do Id.

Na imagem, porém, o jóquei, mesmo perdido, parece estar em movimento; e, a julgar pela postura do corpo (firme, investido no gesto), ele atua como se estivesse de fato numa competição. Mas ele não está. O restante da composição indica isso. Estaria ele determinado a reencontrar o caminho? Não sabemos. O que a figura nos mostra é um cenário de desolação, indeterminação, suspensão de referências: signos deslocados, como os “troncos” estilizados, criam um ambiente labiríntico que intensifica a perda de orientação. Trata-se de um espaço sem coordenadas, sem horizonte, sem finalidade discernível.

Em um nível mais amplo, toda a situação é enquadrada como uma encenação teatral. Isso parece colocar em xeque o próprio sentido de ter um propósito (o jóquei domando o cavalo) e uma direção. Nesse sentido, o jóquei está perdido dentro de um cenário que já é artificial, arbitrário, uma mise-en-scène. Vale a pena orientar-se, reencontrar o caminho, se tudo não passa de um teatro? Perdido onde? Perdido em relação a quê? Indo para onde, se o próprio “mundo” da imagem é uma representação construída, feita por alguém e para alguém que observa? Em certo sentido, isso pode até ser algo cômico; ou, a depender, trágico.

***

Cômico, caso o jóquei, de fato, esteja tentando se achar, ou acredite estar fazendo algo de útil (a determinação de seu corpo e a envergadura do cavalo podem sugerir isso), quando, na verdade, está em um plano fictício, uma cena, um teatro. A imagem permite reinterpretar todas essas pessoas “determinadas” ao nosso redor. O capitalismo é, no fundo, um regime de determinação: tempo é dinheiro, não há espaço para desperdício. A vida deve ser administrada, regulada, orientada por utilidade. Na carreira, o indivíduo mede seu sucesso pelo quanto avança rumo às posições que ele, e as instituições à sua volta, ratificam como melhores ou piores.

É a figura do empreendedor de si: auto-orientado, ambicioso, que cuida de seu corpo (o “cavalo”) para sustentar uma vida produtiva; e que cuida de sua mente para, novamente, garantir produtividade. O preguiçoso, o “perdido”, o blasé, converte-se no anti-herói da modernidade. Pela via do cômico, tudo isso poderia não passar de um Dom Quixote lutando contra moinhos de vento: a morte, a impermanência, a doença, a fragilidade. Um imenso esforço humano para produzir mercadorias que, tão logo surgem, terminam na lata de lixo. Incontáveis recursos, humanos e naturais, mobilizados em nome do progresso, que de fato elevou nossa qualidade de vida, mas ao custo de sofrimentos, desigualdades, exclusões e… poluição.

Trágico, porém, caso admitamos que, embora saibamos que se trata de um teatro, ainda assim precisamos continuar a agir. Negar essa teatralidade pode desaguar no niilismo mais paralisante: tudo é impermanente, tudo é um jogo viciado a favor de alguns poucos afortunados, então: para que lutar? Se a morte é o que esteve antes de nós por bilhões de anos e persistirá por trilhões após nosso desaparecimento individual, que diferença faz agir para um indivíduo singular? A via niilista é perigosa e, em nível subjetivo, pode manifestar-se como depressão, vazio, apatia. O cavalo fica à deriva, e o jóquei sequer precisa fingir que está indo a algum lugar.

Mas há outro desdobramento possível – não o niilismo, mas aquilo que Camus tentou mostrar: a via da indignação. O sujeito, mesmo sabendo que tudo não passa de um artifício, recusa-se a entregar os pontos. Ele resiste. Ele reage. Ele se revolta contra o nada. A subjetividade, nesse registro, nasce justamente dessa recusa, dessa inconformidade. Foi nessa linha que Camus reinterpretou o destino de Sísifo. Contra a intuição comum que o vê como um miserável condenado, Camus o enxerga como alguém que exerce agência ao aceitar sua condição (uma espécie de amor fati sem resignação), persistindo nela. A força não está em escapar do absurdo, mas em enfrentá-lo. Sísifo, afinal, não seria punido caso simplesmente abandonasse a pedra; é justamente o atuar, o insistir, que funda sua dignidade trágica. Outras figuras culturais expressam essa lógica da determinação incessante – talvez nenhuma de modo tão emblemático quanto a Fênix, que encarna a ideia de um renascimento perpétuo, de uma força que se recompõe infinitamente a partir da própria ruína.

Philip Larkin – Aubade

Havia lido o poema de Larkin há algum tempo; qual foi minha surpresa quando esbarrei numa tradução dele, feita por Alípio Correia de Franca Neto, e disponibilizada aqui. Reproduzo abaixo.

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De dia, trabalho; à noite, eu meio que encho a cara.
Olho o negror sem som, me levantando às quatro.
Em tempo, a borda da cortina vai estar clara.
Até lá, vejo aquilo que está ali, de fato:
A morte infatigável, um dia mais perto,
Tornando inviável todo pensamento, exceto
O de onde, como e quando a minha vai chegar.
Uma pergunta estéril: mas o horror que eu sinto
Quanto a morrer e ser extinto
Luz outra vez, para se impor e apavorar.

A mente apaga-se ao clarão. Não é o remorso
O bem que não se faz, o amor que não se vive,
O tempo arrancado sem uso — , ou a dor de nossa
Única vida custar tanto a se erguer, livre
De origens torpes, ou jamais se erguer. É vermos
Esse vazio absoluto e sem um termo,
Aquela inevitável extinção final
Aonde vamos nos perder pra sempre. Não estar
Aqui, não estar noutro lugar,
E em breve: nada mais terrível e real.

Esse é um tipo especial de medo, a que trapaça
Nenhuma anula. A religião se empenhou nisto,
Vasto brocado musical roído de traça,
Criado pra fingir que não se morre, e ditos
Especiosos, como “nenhum ser consciente
Pode ter medo daquilo que não se sente”,
Sem ver que este é o medo: não ver, ouvir, tocar,
Cheirar, ter gosto, nada com que refletir,
Ou com que amar, ou a que se unir,
A anestesia da qual ninguém pode voltar.

E permanece assim, na fímbria da visão,
A mancha desfocada, o calafrio que só retrai,
Contínuo, cada impulso, e o torna indecisão.
Coisas talvez não vão se dar — mas esta vai,
E a nossa consciência entra em agonia, entregue a
Horror-fornalha, toda vez que ela nos pega
Sem bebida ou companhia. Coragem não conta:
Visa não assustar os outros. A bravura
Não vai poupar da sepultura.
A morte é a mesma, se você a teme ou afronta.

A luz aumenta aos poucos, toma forma o quarto.
Lá está, tão claro quanto o armário, o que se sabe
E soube sempre, aquilo a que ninguém é apto
A fugir, e não se aceita. A um dos lados cabe
Ceder. Em salas por abrir, nesse entremeio,
Vai soar, de cócoras, o telefone, e o alheio,
Complexo mundo de aluguel vai despertar.
Sem sol e branco como argila é o firmamento.
Há trabalho para ser feito.
Carteiros e médicos vão de lar em lar.

Eminence front

Fontes de sentido

Existem camadas fundamentais de proteção contra a loucura, círculos concêntricos entre si que, quando em operação, mantêm a loucura afastada. Refiro-me à loucura como uma condição específica: a perda do alicerce da existência, quando o único ponto de continuidade é o corpo — a unidade biológica tangível que persiste, mesmo quando tudo no plano simbólico desmorona. Nesse estado, o corpo se mantém como um fato empírico inquestionável: o ser-coisa que permanece, apesar do vazio que consome a mente. Uso o termo ‘loucura’ porque, para o ser humano, a plena existência não se restringe ao corpo. Este, embora regido por leis precisas e sendo o fundamento da vida individual, é insuficiente por si só. Somos seres que necessitam do simbólico, da linguagem, dos significados que estruturam e sustentam o ‘eu’. A loucura, então, é esse hiato de percepção entre um corpo vivo, independente, e uma mente figurativamente morta. É uma situação absurda que, por vezes, pode se resolver de maneira extraordinária: a mente morta faz o corpo também morrer.

É claro que há uma relação intrínseca entre o físico e o simbólico; talvez, de fato, sejam expressões de uma mesma extensão, como pensava Espinosa. No entanto, para fins deste argumento, adotarei minha definição e considerarei a loucura como um recuo, uma inflexão do ser em direção ao corpo. Trata-se de um corpo operando conforme suas próprias forças vitais, enquanto o ‘ser’ funciona apenas como um espectador atônito.

As proteções que evitam ou contornam esse estado de loucura são, ao menos as mais importantes, as seguintes:

O Amor

O amor, ou seja, a existência de uma relação amorosa entre duas pessoas, é uma força capaz de sustentar o ser, mesmo que, por vezes, envolva dor. Sem o amor — e, sobretudo, sem a capacidade de amar de maneira prática — o ser se vê desamparado, privado de parte de suas forças vitais. O corpo, enquanto potência, pode ser acionado em diversos contextos, como um cavalo que responde às rédeas (pelo menos enquanto ainda mantém suas forças vitais; isso muda drasticamente quando essas forças se esgotam). Assim, o amor surge como uma forma de mobilizar o corpo, insuflando-lhe energia e vida.

O amor articula as dimensões física e simbólica, tendo como eixo central o falo, ponto de contato entre dois corpos e epicentro do prazer. O falo, nesse sentido, não é um órgão (sexual; Freud), mas o conduíte simbólico de uma experiência vivida de forma simultânea e integral por dois seres. Não ‘pertence’ a um ou outro dos amantes; ele representa a unidade metafórica na qual ambos se articulam reciprocamente. O falo é, em última instância, a essência da corporidade sexualizada, um significante estruturador (Lacan), uma transitoriedade, isto é, a condição para o trânsito de estados: estados físicos variados entre si, mas também o trânsito do físico e do mental (mesmo ‘espiritual’).

Sem essa dimensão sensual, o amor se transforma em algo diferente — talvez sublimado, deslocado, mas não menos importante. Poderia, por exemplo, assumir a forma de uma densa amizade. Por sua vez, apenas o componente físico, embora potencialmente gratificante para o cérebro (e, por conseguinte, para o indivíduo), é um estado isolado, sem transição com outros estados. Além disso, há um limite para a sensualidade pura, que, pior ainda, pode aprisionar o indivíduo no invólucro de seu próprio corpo, ou seja, o impedir de transicionar entre diferentes estados e afetos.

A Crença em Algo Maior

A segunda proteção, independente de questões de costumes, nível intelectual, contexto social ou histórico, é a crença em um outro mundo, em um Deus, ou, em suma, em uma religião. Embora haja, nessa crença, problemas como ilusões, delírios e formas de exploração e alienação, é inegável que acreditar em uma vida após a morte oferece consolo. A religião proporciona a garantia de que os absurdos vividos aqui têm, ao fim, algum sentido.

Enquanto forma institucionalizada de relação com o sagrado, a religião é um poderoso mecanismo de sustentação de significados, organizando a vida desde seus elementos mais básicos — como nascimento, sofrimento, união e morte. Assim, o ser humano fica protegido da loucura. Seu corpo não é apenas um organismo esplêndido, embora efêmero e mortal, mas é também templo, receptáculo, vaso e, novamente, um conduíte para o transcendente. Toda a aridez da mortalidade, da doença, da dor e do sofrimento é ressignificada em uma narrativa de salvação, glória e integração ao “Todo”, representado por Deus: fonte de toda a vida, origem de tudo e razão de nossa existência.

A Família

A família é uma instituição central na vida humana, responsável por consolidar os principais guias morais e valores que moldam a existência. É nela que aprendemos a distinguir o certo do errado, entendemos nosso papel no mundo e formamos as primeiras percepções sobre a própria realidade. Para muitos, a família é o universo de referência, seja no núcleo restrito — pais e irmãos — ou no núcleo ampliado, que inclui tios, primos e outros parentes. Além de filtrar a realidade para seus membros, sobretudo antes de estes desenvolverem crenças próprias, a família carrega um conjunto implícito de propósitos, como preservar ou ampliar seu poder, algo evidente em famílias que compartilham negócios ou perpetuam tradições. Muitas vezes, pais mais possessivos continuam a influenciar ou vigiar seus filhos mesmo após a saída deles de casa, criando uma dinâmica grupal que impacta seus membros tanto positiva quanto negativamente.

Com o tempo, aqueles que formam suas próprias famílias tendem a reproduzir, em maior ou menor grau, as influências da família de origem, enquanto também estabelecem novas dinâmicas e valores. O casamento, como ponto central dessa formação, combina diferentes perspectivas sobre o que significa “ser família”, misturando sobreposição, adaptação e síntese. Essa nova unidade pode se tornar uma fonte de proteção contra a loucura, fornecendo aos seus membros ideais, objetivos e valores que os orientam no mundo, ainda que esses elementos sejam, muitas vezes, herdados do núcleo original.

Embora inserida no mundo, a família mantém um certo grau de isolamento, funcionando como uma âncora emocional e prática. Ela é um ponto de partida e de retorno, uma base onde seus membros encontram orientação, segurança e, em última instância, sentido para navegar as complexidades da vida. Por exemplo, um jovem casal que acaba de ter um filho: é inegável, exceto se sejam uns irresponsáveis (e, de fato, estes existem aos montes, talvez sendo mesmo a regra), que farão do filho, da sua criação, desenvolvimento, florescimento e futura autonomia seu centro prioritário. Até o trabalho ganha outro sentido, pois, em parte, se trabalha para prover a família. Um filho, para talvez a grande maioria (a massa) da população que se engaja em projetos de longíssimo prazo, talvez seja a grande referência, uma importante senão fundamental bússola e fonte imediata de sentido.

O Estado

O pertencimento a um estado-nação é uma importante fonte de sentido, pois ancora a identidade social de uma pessoa. Em alguns países, esse pertencimento à pátria é não apenas motivo de orgulho, mas também de distinção social. Bandeiras são hasteadas nas residências, símbolos nacionais são disseminados e materializados em imagens, monumentos, edifícios e objetos presentes no cotidiano. A história do país, que se entrelaça com a história da família, oferece elementos para a construção de uma narrativa sobre o valor próprio, proporciona um senso de direção e propósito, além de possibilitar a aglutinação em torno de um projeto coletivo. Uma nação, além de ser uma entidade delimitada por fronteiras físicas e pela distinção entre ‘nós’ e ‘eles’, é também uma produção imaginária, uma representação abrangente que envolve modos de agir, sentir e pensar. Em países onde o nacionalismo é mais exacerbado, o sentimento de pertencimento nacional torna-se um fator de distinção em relação a outros países, sendo a forma como aquele grupo de pessoas se posiciona no restante do mundo. Ser brasileiro, europeu ou americano faz uma diferença significativa no significado que atribuímos à nossa própria vida e à vida dos outros, além de determinar, em parte, nosso próprio raio de possibilidades objetivas na realidade.

O dinheiro

Existe uma instituição que, no mundo de hoje, representa o poder em estado puro: o dinheiro. O dinheiro é uma instituição abrangente o suficiente para incorporar dentro dele trabalho, carreira, profissão, atividade, capital, mercado, dívida, crédito. Ter dinheiro é ter poder. Não apenas poder de comprar coisas, mas o de ser respeitado, de influenciar pessoas, até mesmo países inteiros. A busca pelo dinheiro traz consigo uma infinidade de ações que, sozinhas, podem consumir a vida de uma pessoa. Tornar-se rico, ter uma conta bancária recheada, poder comprar o que se deseja, ostentar, ou meramente saber que se tem. Com dinheiro, as pessoas te buscam, querem te ouvir; as pessoas te servem, se submetem, colocam suas energias em função de você (seja você uma empresa ou não). O dinheiro é status, posição social. Para consegui-lo, o indivíduo precisa engajar-se em algum tipo de atividade, seja profissional ou não. Isso consome tempo. Mas, sobretudo, isso orienta, canaliza, encaminha e sustenta uma busca; sustenta o desejo (nem que o desejo seja o desejo de ter mais dinheiro; o poder que visa a mais poder; “vontade de poder”). Dá um fio condutor para uma vida inteira.

Empreendedores, como se diz, não pensam no dinheiro, mas sim em revolucionar alguma coisa. Pode ser, nunca falei com um empreendedor de verdade. Talvez a adrenalina de começar algo do zero, ou de transformar algo que já exista, o sentido intrínseco desse tipo de coisa, talvez isso seja o suficiente ou mesmo seja o combustível da ação empreendedora. Mas não há empreendedores pobres, quebrados; quer dizer, até existem — na verdade, são a maioria. Mas isso não os faz “vibrar”, o fato de estar quebrado mas ainda assim continuar engajado, comprometido, envolvido até a alma com sei lá o que esteja empreendendo. Não, é preciso que tal atividade empreendedora gere dinheiro. Por si só, em que pese algum discursinho barato dizendo o contrário (em geral, usando alguma outra das instituições acima mencionadas), é possível estruturar uma vida inteira em torno da busca, ampliação e conservação de dinheiro/poder — se isso é justificável, viável, ou mesmo desejável eticamente, não é o ponto para este argumento.

Em outro momento, tentarei abordar a loucura que se insinua quando uma ou mais dessas fontes protetoras se rarefazem ou simplesmente desaparecem. Elas podem se sobrepor, reforçar-se mutuamente ou, ao contrário, anular-se umas às outras.

Repetição e vulnerabilidade

Assisti ao filme Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles há algum tempo, talvez uns cinco anos, por indicação de um aluno meu à época. Lembro-me de ter gostado do filme de Chantal Akerman, embora ele tenha me causado algum incômodo. Entre outras coisas, é um filme um tanto claustrofóbico, já que praticamente toda a narrativa se passa dentro do apartamento de Jeanne Dielman. Além disso, a própria protagonista é uma figura inquietante. Por fim, há a temporalidade do filme, com mais de três horas de duração: tudo o que vemos na tela acontece em tempo real. Por exemplo, assistimos à chaleira começar a ferver desde o momento em que Jeanne liga o fogo até quando a água finalmente ferve e o apito soa. Creio que quase todas as cenas seguem essa temporalidade natural dos eventos, gerando certo incômodo em um espectador do acelerado século 21.

Hoje, o filme ressurgiu para mim de uma forma completamente nova e, francamente, assustadora. Estava ouvindo um podcast do excelente professor de política britânico David Runciman. O programa, de altíssima qualidade, combina conteúdo rigoroso com perspicácia, humor e inteligência. Organizado em séries temáticas, neste caso tratava-se de uma sobre grandes filmes, e foi ali que ouvi o episódio dedicado a Jeanne Dielman.

Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975) | MUBI

Cena do filme Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975)

Na interpretação de Runciman, o filme de Akerman é, antes de tudo, sobre controle. E o controle, no caso de Jeanne, manifesta-se na ritualização exagerada de atividades cotidianas banais. No filme, ela é uma dona de casa extremamente metódica. Cada tarefa — descascar batatas, lavar o banheiro, tomar banho, arrumar a mesa para o jantar com o filho, com quem divide o apartamento — é executada sempre da mesma forma. Nessa repetição, Jeanne encontra conforto e previsibilidade. Acompanhá-la nesses rituais é ao mesmo tempo estranho, misterioso e hipnotizante, como destaca Runciman. Ele questiona: como ninguém além dos espectadores a observa realizando essas tarefas, estaria Jeanne consciente do que faz? Em certo nível, provavelmente não, já que são gestos automáticos, parte de sua “memória muscular”. Contudo, Runciman sugere que há ali uma performance: Jeanne faz tudo isso para si mesma; ela é sua própria plateia. Ao agir assim, ela encontra conforto em fazer tudo “certo”, mesmo sob o peso opressivo do trabalho doméstico.

A partir disso, Runciman propõe uma segunda leitura fascinante: o filme também é sobre escolha. Sobre o dilema existencial de escolher — mesmo sabendo que muitas escolhas são irrelevantes. Por exemplo: onde, quando e como descascar uma batata? O ato em si, a hora de começar, o método a ser usado, são decisões minúsculas, sem grande importância. Contudo, essas escolhas precisam ser feitas. No contexto da rotina doméstica, essas “micro-escolhas” parecem triviais, mas são inevitáveis. Jeanne, para lidar com isso, hiper-ritualizou quase tudo. Dessa forma, eliminou qualquer espaço para dilemas ou ambivalências. Mas isso não dura. A menor quebra nessa rotina cuidadosamente construída é suficiente para desestabilizá-la, como quando as batatas cozinham além do ponto. No universo do filme, isso é uma catástrofe que abala Jeanne profundamente.

Por fim, Runciman oferece uma terceira interpretação: apesar de toda a ritualização e do controle aparente, Jeanne é profundamente vulnerável. Essa visão me fez reconsiderar o filme, especialmente como psicólogo, pois sei que a personagem demonstra traços de transtorno obsessivo-compulsivo. Para quem está nesse estado psíquico, manter o controle é fundamental. Na superfície, Jeanne parece controlar sua casa e sua rotina com perfeição, mas tanto ela quanto sua casa estão inseridas em um contexto maior. O apartamento está num prédio, que está numa cidade, dentro de uma sociedade. Runciman destaca um aspecto que evidencia essa vulnerabilidade: além das tarefas domésticas, Jeanne recebe homens em casa e é paga por encontros sexuais. As cenas de sexo não são mostradas, mas vemos a preparação e o momento em que os homens saem. Jeanne faz tudo isso com o mesmo mecanicismo ritualístico, e o dinheiro recebido é poupado.

Entretanto, Runciman sugere que poupar dinheiro, no contexto do filme, é outra ilusão de controle. A inflação no final dos anos 70 era especialmente agressiva. Assim, o ato de economizar dinheiro, que parece oferecer segurança, é na verdade fútil. Ao depositar o dinheiro no banco, Jeanne perde completamente o controle sobre o que acontecerá a seguir. A inflação destrói o valor do dinheiro e, por extensão, invalida todo o trabalho que gerou esse dinheiro. Para Runciman, essa vulnerabilidade econômica reflete a inflação de suas ações ritualísticas: tudo o que ela faz, toda a sua tentativa de controle, é corroído. Jeanne confia nesse sistema para manter sua vida burguesa e seus rituais, mas essa confiança é apenas fantasia. No fundo, não há controle algum.

Nos momentos finais do filme, Jeanne, após limpar o apartamento, senta-se em uma poltrona, com dificuldade para respirar. Respirar torna-se, então, um ato de escolha e, como tal, um dilema, um problema existencial. Ela não tem certeza se sabe ou mesmo se deseja respirar. Um terror instala-se nela — um terror vinculado à necessidade primordial de tomar uma microdecisão: respirar. Algo que, naturalmente, seria automático transforma-se em uma questão consciente, exigindo a intervenção de Jeanne, de sua vontade. O controle que ela tenta exercer em sua vida entra, assim, em uma espiral de colapso, atingindo seu ápice paradoxal: o que deveria ser natural e automático torna-se objeto de deliberação, de ocasião ou palco para a emergência da angústia.

Runciman conclui dizendo que este é um filme em que as grandes coisas são pouco importantes, enquanto as pequenas coisas se revelam absolutamente existenciais. Por exemplo, um evento significativo no filme é Jeanne matando um homem. No entanto, essa ação, que poderia ser vista como central, é tratada quase como algo menor, irrelevante no contexto da narrativa. Por outro lado, pequenos gestos, como a preparação de um café, tornam-se os momentos mais importantes. Eles não apenas ocupam grande parte do tempo, mas demandam um nível profundo de implicação emocional e psicológica da personagem.

Perguntas e Cia, 1

Você descobre melhor o seu desejo quando fracassa ou quando tem sucesso? Quando persiste ou desiste?

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É possível sentir-se motivado, energizado, sem um propósito? É possível construir sentido sem um objetivo?

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O que é uma pessoa corrupta? Alguém envolvido na política ou na administração pública? Ou seria uma pessoa que, conforme suas circunstâncias mudam, também altera suas ideias, valores e comportamentos de forma correspondente?

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Como espera que os especialistas em economia da mídia digam algo diferente do que sua própria subjetividade os faz enxergar no mundo? Essa eu respondo: em um mundo onde a financeirização dominou todos os espaços, o que temos são subjetividades maquínicas, agindo como máquinas, no sentido de uma máquina animada por um código. Será que estou indo longe demais ao afirmar que essas subjetividades nem sequer são reais, mas, sim, a manifestação do “capital” como força propulsora, como “ânima” (código) do mundo ocidental? 

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O caminho para a justiça social, e até mesmo para a afirmação individual, seria o da paz ou da guerra? Da não-violência, mesmo diante das maiores barbáries, ou da violência? O caminho está mais próximo de um Martin Luther King ou de um Malcolm X?

Sobre desistir – parte 2

O problema surge quando nos deparamos com um “ponto de não-retorno”, aquele momento em que permanecemos por tanto tempo no caminho de uma escolha passada, baseada em um desejo que talvez também pertença ao passado. Quanto mais avançamos nessa trajetória, mais, em teoria, sentimos que há algo a perder caso optemos por desistir. Por vezes, toda uma vida é construída sobre essa escolha, consolidada até o ponto em que algo essencial dentro de nós se extingue – algo que antes dava sustentação orgânica à nossa existência. Nesse momento, resta apenas a forma, o invólucro de um desejo que já não nos serve, como um casulo abandonado.

É como caminhar por uma estreita ponte de madeira e, de repente, perceber que os degraus terminaram. Sem suporte, começamos a cair, e a sensação é de um precipício infinito, onde só existe a queda. Frente a esse vazio, uma estratégia possível – e paradoxal – é não fazer nada: apenas continuar. O lado positivo de uma trajetória construída é sua própria inércia. É como desligar o motor de um carro no alto de uma colina; a energia potencial acumulada é suficiente para fazê-lo deslizar por bons quilômetros, mesmo sem engatar a marcha. Então, você simplesmente deixa o carro seguir.

É evidente que essa “estratégia” de enfrentamento não é das mais saudáveis. Em algum momento, ela transforma a pessoa por dentro, silenciosa e gradualmente. Imagine esta cena: você é um recipiente vazio. Alguém, ou algo, começa a despejar concreto dentro de você. O processo é lento, iniciando pelos pés. Demora muito, mas, com o tempo, o concreto alcança o coração. E continua a subir. Devagar. Sem que você perceba totalmente, embora consiga sentir de alguma forma, acaba completamente tomado – transformado em pedra. Firme, sólida, absolutamente “certa” de si mesma. Terrivelmente persistente.

***

Snow Storm: Steam-Boat off a Harbour’s Mouth, 1842, J. M. W. Turner

Persistir na adversidade. Eis uma verdade cultural quase universal. Se você adiciona a isso uma conotação religiosa, então chega à conclusão de que persistir na adversidade não é algo fortuito, mas, sim, uma provação divina, como ocorre com o personagem bíblico Jó. Deus nos sustenta enquanto atravessamos uma intempérie. Quando era seminarista, lembro-me de ter um santinho no qual uma trilha na areia começava com duas pegadas e terminava com quatro. Nos momentos difíceis, sem perceber, Jesus caminhava ao seu lado. Ou algo assim. Na essência, a ideia era de que não estamos sozinhos ou abandonados quando acreditamos que tudo está perdido.

Tenho plena consciência da força que uma crença como essa imprime em uma alma atribulada. Em versões seculares, a mesma moral é repetida incessantemente, como nos filmes de Hollywood. Acredito que a cultura americana seja o melhor exemplo de uma versão secularizada da história de Jó. Por lá, a subjetividade é tão pressionada a persistir, tão enclausurada em uma ideia espartana de força e coragem — de jamais jogar a toalha — que a única válvula de escape para racionalizar a desistência é a linguagem da patologia mental. Fulano não conseguiu “vencer na vida” (leia-se: persistir, resistir) porque sofria de depressão, crises de ansiedade, problemas de atenção, e assim por diante. Como toda cultura, a americana — e, por extensão, sua projeção no imaginário global via filmes hollywoodianos — é um espartilho tão apertado que se confunde com a própria carne.

Ao homem, como gênero, é legado o triste destino de uma virilidade constantemente posta à prova. Ao menor sinal de intenção de desistir de algo, a acusação logo vem em forma de questionamento do caráter masculino. Às mulheres, como gênero, é atribuída a preferência pelo “macho alfa”, uma aberração de indivíduo completamente doutrinado na cartilha da persistência, do “enduring”, das criativas e infindáveis estratégias de “coping” para continuar na luta, como um gladiador. Não há lugar para homens considerados fracos em uma cultura de pedra como essa — de resto, algo que também se observa em muitas outras culturas ocidentais, especialmente naquelas com uma história marcadamente ascético-religiosa.


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