Absurdos cotidianos
março 16, 2024
Quando várias pessoas fazem a mesma coisa, e essa coisa chega a ser uma coisa maluca, elas têm noção da maluquice? Viver em sociedade é, em parte, compartilhar de uma loucura coletiva. Mas disfarçada, mascarada, deturpada. Assim, no decorrer de um dia, anestesiadas pelo repetitivo, as pessoas vamos passando por situações, testemunhando coisas e fazendo coisas das quais sequer temos a menor consciência. Não dá tempo. Não é preciso. É tudo óbvio. Você tem medo do que poderia encontrar se parasse para pensar? Ops, “pensar”…
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Pois veja. Hoje eu estava na fila de uma quitanda. Muitas frutas ao redor. Como consequência, algumas abelhas. O cara atrás de mim, distraído, identifica uma abelha. Ele, tão natural quanto o sol nascendo e se pondo, dá uma petelecada e mata a abelha. Em seguida, pega o celular. Liga para alguém. E diz: “Ei, posso ir almoçar aí com vocês hoje? Eu não como muito, não se preocupe”. Aí fiquei pensando: seria essa uma pessoa confiável? Honestamente, acho que não. Nunca se esqueça de uma coisa: o diabo está nos detalhes.
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Situação de grupo. Estou no meio de algumas pessoas. Há uma sala. Na porta, a identificação do sentido daquele espaço. Então, há certa compreensão de que o lugar é “sério”, “científico”. Aí, aqui e ali, alguns elogios, falas mansas, amistosas; e sobretudo, há sorrisos. Bocas se contraem, dentes aparecem. Sons estridentes sobem ao ar, rodopiam, e mal têm tempo de se dissiparem e logo aparecem mais sons, mais estridência. Eu só vejo essas bocas, esses ruídos, essas imposturas. Pessoas mortas rindo juntas, desconectadas de suas bocas. Seus espíritos estão em lugar muito distante…mas, infelizmente, suas bocas estão aqui, ruidosas, falsas. Quando a mente de uma pessoa coincide completamente com o que está, de fato, acontecendo chamamos isso de “gozo”, ou, em alguns casos, de orgasmo (fusão mente/corpo). No resto do tempo, imposturas. Somos como multidões de insetos cuja existência apenas se justifica quando, aleatória e singularmente, ocorre uma junção entre movimentos físicos e n possibilidades (infinitas) de combinações geradoras de uma outra vida.
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Do nada, enquanto falava, olhei para minha mão direita. Para o braço direito. Estranho. Do nada, o pensamento que tive foi: uma mão de um cadáver. Não me parecia uma mão, um braço, vivos. Pálidos. De um branco parecendo leite velho. É engraçado porque, sei lá como, vi a mão e o braço como pertencentes ao mundo, não a mim. O eu, essa unidade plena, simplesmente, assim de sopetão, não reconheceu uma parte do corpo como sendo dele, ou melhor, ele. Um escárnio disparou imediatamente no espaço abstrato do eu. Ora: que mão cadavérica é essa? Que desgraça!
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A cada interação, um amontoado de análises póstumas. Ajo num ambiente, falo algo, “ensino” algo. Crio uma narrativa. Depois, quando já estou em casa, repasso a coisa inteira. Me atenho a detalhes. Que diabos de vida é essa? Há uma audiência de carne e osso diante de mim, mas é como se eu estivesse interagindo com espectros que já estão todos determinados no palco da minha consciência escrupulosa. Quem é o objeto do escrúpulo? Eu! Estou falando para mim, depois me avaliando, me ponderando, me retificando. Mas há algo muito mais sombrio: esse é apenas um pedaço ínfimo do que, de fato, aconteceu. Pois pense na imensidão de coisas que estavam passando pela mente das outras pessoas que me escutaram. E é aí que tudo fica ainda mais maluco: cada uma delas pode ter pensado coisas completamente diferentes, se atentado para detalhes ínfimos que me escaparam completamente. Talvez, no fundo, o objetivo seja justamente esse: ao focar nos meus detalhes, desprezo a constelação de infinitos outros possíveis. Pois, no fundo, é disto que se trata um encontro (uma aula, que seja): encontro de infinitos.
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É assim. Performo no ambiente. Lanço uma “grande sacada” e espero, emocionado até, uma ressonância, uma confirmação. Me empolgo com o que lancei no ambiente. Acho-o mágico, transformador. Até sinto calafrios quando lanço a coisa. É como se fosse o lançamento da resposta para um enigma qualquer. Porém, tudo está certo, tudo está resolvido…só faltou “combinar com os russos”. O outro não entendeu nada do que eu esperava que ele entendesse. Frustração? Sim, mas também vergonha. É como se, calado na maior parte do tempo, eu resolvesse me levantar, ir até a margem do mar, numa manha fechada pela neblina, e concentrasse todo o meu ser, toda a razão de estar vivo, e gritasse a grande sacada. E então, nada. Os navios ali parados, cheios de pessoas, escutaram um ruído, mas não ouviram nada. Afinal, por que ouviriam? O que há de novidade num ruído qualquer numa manhã qualquer num dia qualquer? Eu, que gritei, me sinto como um membro de alguma espécie cujo ápice da vida fosse esse grito. E que, sem retorno do mundo, ou independente desse retorno, agiu como deveria. Só que, diferente desse membro dessa espécie, eu esperava por uma conexão, por uma fusão total, pela qual toda a espera, toda a concentração de meu ser na consumação desse grito, desse ruído produzido, enfim gerasse algo, me arrancasse desse desespero de ter de gritar.
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O amor é o intervalo que dura entra a barbárie dos eventos aleatórios e a esperança de que, enfim, chegamos ao evento estipulado como o resultado “final” quando os dados foram lançados. Quando a utopia abraça e se funde com a infinidade banal de eventos aleatórios, gritos sem resposta, promessas sem santos, lágrimas sem destinatário. Quando o eco de seu grito é, enfim, retornado e reconhecido. Ou quando você reconhece o eco do grito de outra pessoa.
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Escute os poetas, e não pastores ou padres, muito menos políticos. Se você não quiser ou não puder, bom, nesse caso seguiremos “evoluindo” a cada dia, com nossas sociedades cada vez melhores, mais “desenvolvidas” e etc.